segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Erro de Português

A roupagem da língua

Noção de erro de português é afetada pela idéia de que, vista do passado, toda evolução é corrupção ---- Aldo Bizzocchi

Não se costuma ir à praia de terno, neste que é um exemplo célebre a ilustrar que há uma forma de expressão lingüística (o registro) adequada a cada situação de discurso
Somos um povo que adora discutir a própria língua. E quando o fazemos, um dos assuntos que invariavelmente vêm à baila é a famigerada questão do erro gramatical. Muito se tem debatido a respeito, e a suposta existência de erros em nossa fala (bem como na escrita) ensejou até o surgimento de uma nova profissão, por sinal lucrativa, a de consultor gramatical. Igualmente, peritos no assunto têm mantido com sucesso colunas em jornais, sites, programas de rádio ou televisão com o propósito de ensinar as pessoas a falar corretamente o seu próprio idioma. Isso porque, segundo o diagnóstico catastrofista desses entendidos, nunca se falou tão mal o português como agora, nossa língua caminha inelutavelmente para a ruína e a dissolução, já não se escreve mais como antigamente.
Curioso é que, já no século 18, o escritor irlandês Jonathan Swift deplorava a degradação da língua inglesa. E o grande orador romano Cícero já havia feito o mesmo no século 1 a.C. com o latim. Ou seja, "vista do passado, toda evolução é corrupção".
É preciso, então, definir claramente o que é o erro em matéria de língua. É evidente que, se um estrangeiro tentando falar português disser "O meu mulher ser muito bonita", cometerá um erro, a ponto de se poder dizer que isso não é português. Da mesma forma, quando cometemos um lapsus linguae, isto é, um equívoco involuntário do qual temos consciência, estamos diante de um erro lingüístico.
Mas o que se costuma chamar de "erro de português" é uma expressão lingüística que nada tem de acidental, já que é sistemática e, geralmente, proferida por pessoas de menor nível escolar e socioeconômico, embora possa ocorrer até nos mais altos escalões da sociedade. Para a lingüística, que é a ciência da linguagem humana, esse fenômeno não pode ser chamado de erro. Se a língua é um sistema de signos que se articulam segundo leis definidas para permitir a comunicação e o pensamento humanos, toda expressão lingüística, mesmo a das pessoas iletradas, cumpre esse papel com eficiência.
A idéia de que a maioria das pessoas fala "errado" nasce com o estabelecimento da chamada gramática normativa, o que, no Ocidente, ocorreu em Alexandria, colônia grega no Egito, a partir do século III a.C. A ideologia que presidiu a elaboração dessa gramática - e que persiste até hoje nas gramáticas normativas da atualidade - é a de que a modalidade escrita da língua, especialmente a literatura do passado, é muito superior à fala espontânea, assim como a língua mais perfeita é aquela falada pela classe mais alta da sociedade.
Usos inadequados
A maioria dos chamados erros constitui, na verdade, um uso lingüístico inadequado à situação de comunicação. Para entendermos melhor essa inadequação, vamos fazer uma analogia entre a língua que falamos e a roupa que usamos. Ninguém em sã consciência vai a uma cerimônia de formatura de camiseta e bermudas tampouco vai à praia de terno. Assim como há uma roupa adequada a cada ocasião, há uma forma de expressão lingüística, chamada registro ou nível de linguagem, adequada a cada situação de discurso.
Existe até mesmo uma correlação entre a indumentária e o registro lingüístico. Num tribunal, os juízes usam togas e se expressam num registro ultra-formal; numa palestra a executivos, o conferencista veste paletó e gravata e fala de modo formal. Numa aula, o professor pode usar roupa casual e expressar-se de modo semiformal, até com o uso de coloquialismos e algumas gírias para fins didáticos. Finalmente, num bate-papo entre amigos numa mesa de bar, a linguagem e a vestimenta são totalmente informais: se o bar fica à beira-mar, é aceitável até mesmo usar traje de banho. Cabe lembrar que somente os dois primeiros registros (formal e ultraformal) correspondem à chamada norma culta e estão, portanto, obrigados a respeitar a gramática normativa.
Mas e aquelas pessoas que moram na periferia ou na zona rural e dizem "pobrema", "cardeneta" ou "puliça", elas não estão falando errado? Do ponto de vista normativo, sim. Mas, como disse, a gramática normativa só se aplica a situações e ambientes formais. O registro deve, antes de tudo, estar adequado ao contexto social da comunicação. Pessoas que vivem num meio de baixa escolaridade e pronunciam "pobrema" estão adaptadas ao seu habitat. Se você duvida, experimente entrar numa favela do Rio vestindo roupa social e vá conversar com os traficantes usando linguagem de magistrado para ver o que lhe acontece.
Não estou dizendo com isso que o linguajar das pessoas não-escolarizadas deva ser incentivado. É evidente que, como cidadãos, devemos lutar para acabar com a pobreza e a ignorância. Nesse sentido, não apenas pronunciar "pobrema" é errado; morar em favelas ou andar maltrapilho é muito mais. No entanto, muitos brasileiros moram em barracos ou na rua e só têm uma roupa - muitas vezes esfarrapada - para vestir e só um registro para falar. Sua fala é pobre como é pobre a sua existência, tanto física quanto mental. O imaginário da classe média idea­liza essas pessoas indo a todos os lugares sempre com a mesma camisa surrada, os mesmos chinelos velhos, e falando com todos sempre do mesmo modo.
O resto é resto
O problema - ou "pobrema" - é que os gramáticos mais conservadores sustentam que somente o português culto é português; o resto é outra língua - bárbara, aliás. Se fossem estilistas de moda, prescreveriam o uso de paletó e gravata em todos os lugares e ocasiões, inclusive na praia. Por outro lado, alguns pseudo-lingüistas, que se declaram "modernos" ou "de esquerda", mas pouco entendem de lingüística (e com isso denigrem a imagem de estudiosos sérios), defendem para a língua algo como usar trajes de praia em todas as ocasiões. Obviamente, nenhuma das duas posturas se pauta pelo bom senso.
Em primeiro lugar, a língua evolui, e este é um fato inexorável. Portanto, o erro de hoje pode ser o acerto de amanhã. Como exemplo disso, o pronome você evoluiu a partir de vosmecê, que se originou de vossa mercê. Pronúncias "erradas" como chicrete e crasse nada mais são do que a continuação histórica de um fenômeno que vigorou no português medieval, chamado rotacismo, e produziu "cravo", "fraco", "prato" e "prumo" a partir do latim clavu, flaccu, plattu e plumbu.
Sobretudo nas regiões rurais do Brasil, onde a língua passa de pai para filho com pouca influência externa (contatos com outras populações, rádio, televisão), é natural que a fala seja mais "conservadora", no sentido de ter preservado mais certas características do português dos tempos do Descobrimento.
Em segundo lugar, o português não-padrão tem suas regras próprias, tanto quanto o altamente policiado português padrão. Tanto que se ouve "nós foi onte no Morumbi assisti o jogo", mas ninguém diz "onte no assisti foi nós Morumbi jogo o". Do ponto de vista de um falante inculto, também existe a noção intuitiva de certo e errado. Costuma-se dizer "veve" e "ixeste" no lugar de "vive" e "existe", mas não se diz "dicede" ou "permete" em vez de "decide" e "permite".
Mídia eletrônica
Em terceiro lugar, a língua varia de região a região e de uma classe social para outra. Os vários grupos sociais falam de modo diferente porque são diferentes. A idéia de que somos um só povo esconde o fato de que o Brasil, assim como a maioria dos países, é o resultado da convivência e do conflito de muitas culturas e muitas visões de mundo distintas, algumas até inconciliáveis. Nesse sentido, o português "correto", isto é, a norma padrão, nada mais é do que o conjunto dos usos lingüísticos do grupo social dominante.
Além disso, por termos sido colonizados pelos portugueses e estarmos longe da antiga metrópole, é natural que a distância entre a fala relaxada e a escrita rigidamente normatizada seja maior aqui do que em Portugal. Afinal, a norma culta da língua baseia-se em grande parte na fala lusitana.
Outro fato digno de destaque é que, nas últimas décadas, graças à influência da mídia eletrônica, mas também, infelizmente, ao sucateamento do ensino, tem havido uma tendência à informalização da linguagem em nosso país, fenômeno chamado tecnicamente de rebaixamento de registro.
Com isso, já é normal o uso do nível formal de linguagem em situações que antes requeriam o ultraformal, como um discurso de paraninfo em cerimônia de formatura. Da mesma forma, tornou-se comum parlamentares, ministros e até presidentes da República se expressarem publicamente de modo semiformal, ao mesmo tempo em que ambientes onde antes se exigia no mínimo o registro semiformal, como as universidades, já aderiram à informalidade, tanto no traje quanto na língua.
Empobrecimento do idioma, dirão alguns. Adaptação da língua às necessidades práticas do dia-a-dia, dirão outros. É claro que o desmantelamento do nosso sistema educacional, com inegáveis prejuízos ao ensino de português, é deplorável sob todos os aspectos. Mas também não há como negar os benefícios que um certo "enxugamento" da linguagem traz à comunicação, deixando-a mais simples e objetiva, especialmente numa época em que o tempo se tornou um bem tão escasso.
Aldo Bizzocchi é doutor em Lingüística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume) e Anatomia da Cultura (Palas Athena) - www.aldobizzocchi.com.br