quarta-feira, 26 de março de 2008

Machado de Assis



O estilo do ano

o Centenário da morte de Machado de Assis é bom pretexto para testar os recursos de escrita que o tornaram um dos textos mais elegantes da língua portuguesa
Luiz Costa Pereira Junior
É preciso testar as unanimidades, mas mesmo quem não o leu atesta a grandeza de Machado de Assis. O Brasil, afinal, é isso. E Machado é universal, nosso maior escritor nativo de todos os tempos, que os tempos são pouco mais de 500 anos, mas são nossos.
Já o ano é de Machado. Na poluição de homenagens (ver amostra, nestas páginas) há todo tipo de pegada. Festeja-se sua ironia, ilumina-se cada ousadia, caçam-se novidades para a data, mas o baú do que não se publicou dele parece raso: permitirá uma espiadela sobre crônicas não tão conhecidas, um rasante sobre cartas ignoradas (Ver Inéditos de Machado, página 30). Com poucos autores se descobriu tanto ao ler sua obra; com poucos temos tanto a descobrir, a cada leitura. A poluição de homenagens é até pouca. O homem faz sombra. Seu texto, um século depois de sua morte, vibra.
Os indícios dessa vibração superam as pompas e as leituras de vestibular. Eternidade é estar o morto com os vivos que não irá encontrar, diz Jorge Cooper. Machado efetivamente está com os vivos que nem poderia imaginar, e não se trata de computar seus exemplares vendidos. É o autor sobre o qual o Brasil adora falar. A julgar pela comunidade de 70 mil fissurados em Machado no Orkut. A julgar pelas 625 mil páginas sobre ele no Google de hoje e, antes, pelos mais de 3 mil estudos e verbetes sobre ele em jornais, revistas e livros do mundo em quatro décadas, informa a Bibliografia Machadiana 1959-2003 (Edusp), de Ubiratan Machado.
Sinal talvez de seu encanto contínuo, já se falou tanto de Machado que até as interpretações consagradas sobre sua obra conquistaram o benefício da dúvida; ou, pelo menos, da relativização. Há quem ache agora um mito a idéia de autor de duas fases (o romântico até ingênuo que guina a carreira na maturidade, com Memórias Póstumas de Brás Cubas), em favor da apreensão orgânica de seus livros, fruto que seria da mesma sintonia intelectual e retórica. Há quem ache também irrelevante chamar atenção para o "enigma de Capitu", de ser ela ou não traidora, que o projeto de Dom Casmurro não é apenas a incerteza sobre a mulher de Bentinho ou sobre o narrador Bentinho, mas sobre a própria condição de narrador.
Para muitos, Machado teria desenvolvido sua escrita dentro de um marco de ironia estilística, a que José Guilherme Merquior deu fama numa conferência (Machado em perspectiva), na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1989. Merquior chama a atenção para a originalidade da leitura de Enylton de Sá Rego, o primeiro a vincular Machado à tradição da sátira menipéia.
Retórica machadiana
O filósofo cínico Menipo de Gandara (século III a.C.) desprezava as convenções e a riqueza. Nada do que escreveu nos chegou, mas inspirou Saturae Menippeae, de Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.), e suas histórias de viagens maravilhosas.
O gênero menipeu é também o de Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), que imagina, em Apocolocyntosis, o post mortem do imperador Cláudio, por meio de mixórdia, prosa metrificada e mistura entre o sóbrio e a abobrinha, o fantástico e o real. E após Sêneca, vieram o romano Petrônio, no século 1, e o grego Luciano de Samósata, no 2, assim como Erasmo de Roterdã e Laurence Sterne, inspirador de Machado.
A sátira menipéia traz uma situação fantasiosa ou descabida, mas seu registro é ponderado, com o distanciamento e os elementos de realismo que tornam uma situação grotescamente plausível Memórias Póstumas de Brás Cubas é a encarnação mais explícita dessa tradição.
Estabelecer uma tradição para Machado pode, no limite, negar o que o diferencia. Machado é maior que essa dúvida, no entanto. Cantar a tragédia com gravidade seria jogar no mesmo terreno da melancolia, do mundo de certezas opacas e unívocas. Mas parodiar a morte é rir da própria autopiedade. E Machado o fez embaralhando gêneros, abusando da ironia e do absurdo quando parecia usar técnicas exclusivas do realismo (ser realista era não tanto fazer o retrato das situações sociais, mas revelar a natureza intestina de uma sociedade).
Ou, na frase-síntese do escritor Idálsio Tavares: "No tempo das fotografias, Machado manejava o caleidoscópio".
Humor gráfico
Autor de 9 romances, 4 livros de poesia, 7 de contos, 10 peças de teatro, além de críticas, traduções e crônicas, Machado foi o crítico da sociedade fútil, da falsidade, da retórica vazia, mas foi consciente de que é impossível fazer o relato completo da realidade, pois o sentido das coisas não é estável, é movediço; não é sólido, mas gelatinoso. Seu humor é gráfico, brinca com associações de idéias, desenha-se na imaginação do leitor, não vem da piada explícita. Daí seu esmero retórico.Como Machado, por exemplo, explorava sua hoje reverenciada sutileza?
Retórica machadiana lançou olhar compreensivo sobre natureza humana
Entre outros fatos, a serviço de um olhar compreensivo sobre as fraquezas humanas. No conto Um Homem Célebre (Várias Histórias), essa sutileza é operada na prática. O pianista Pestana sonha com a imortalidade que nunca terá, a mesma das criações clássicas de Beethoven, Cimarosa ou Mozart. Tomara gosto pela música na infância com um padre, que as más línguas garantem ser seu pai biológico. Mas, engolido pelo horizonte limitado de seu tempo, Pestana ganha fama como compositor de polcas. Esse é o conflito nuclear da narrativa e não caberia desviar-se dele; por isso, Machado descarta explorar a filiação:"Compusera alguns motetes o padre, era doudo por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, cousa de que se não ocupa a minha história, como ides ver."
Centra-se no essencial: a sina de um músico de ambições clássicas que, popular mas vencido pelas imposições da ocasião, morre sem compor nada de erudito ("bem com os homens, mal consigo mesmo").
Até ali o assunto da paternidade de Pestana esteve encerrado, mas Machado, de relance, deixou lá pela metade do conto sua marca. Enquanto narra o pianista num momento entusiasmado da composição de uma polca, menciona:
"Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação".
E nos dá, discreto, com piscadela, a confirmação dos boatos maldosos, que, na superfície, garantira evitar.
Elegância retórica
A esse tipo de elegância retórica para fechar pontas soltas de uma história, Machado inseriu outros.
Em Verba Testamentária, conto de Papéis Avulsos, ironiza a dicção médica ao descrever um caso de inveja como se fosse patologia. O autor ilumina os comportamentos insólitos, mas os disfarça em meio a cenários a que estamos familiarizados, interpreta Ivan Teixeira, na introdução de Papéis Avulsos, da Martins Fontes (2005). O mundo real não é melhor do que sua mais tímida projeção ideal. Se isso é de algum modo verdade, ela é um palco mais saboroso para o próprio realismo. "A literatura já não será espelho de exemplos, mas campo de possibilidades, laboratório de hipóteses ou jogo de tentativas", escreve Teixeira.
Para ele, Machado foi levado à elocução irônica e humorística ao buscar a proporção adequada entre tamanho do texto, natureza da matéria e tom do estilo, a chamada "justa grandeza" dos clássicos.
Ele incorporou alusões que dão, à superfície das situações que descrevia, a força de comentário crítico. Não é um narrador preocupado, lembra Manuel Bandeira, com a paisagem e a descrição. O exterior só o interessa na medida em que surte efeitos sobre o íntimo.
Cumplicidade
Seu narrador é irônico, está em permanente diálogo com o leitor. Seu texto quer cumplicidade, busca mudar o gosto de um público que não era, em seu tempo, dos mais experimentados. Num país com então 17 milhões de habitantes (quase 70% na área rural), Dom Casmurro encontrou 18% de alfabetizados, mas só 2% capazes de comprar livros, informa a Câmara Brasileira do Livro. Destes, a preferência era por outro tipo de leitura (o best-seller à época da obra máxima de Machado era Por que me Ufano de meu País, de Conde Afonso Celso de Assis Figueiredo, com 300 mil cópias vendidas).
Dialogar com o leitor era talvez um ardil para estabelecer um outro acordo ficcional. No conto A igreja do Diabo, Deus censura a camuflagem retórica do demo, que decide fundar igreja própria (ele o faz com sucesso e uma multidão de adeptos, que, com o tempo, começam a fazer o bem às escondidas, "é da natureza humana", replica o Senhor, ao fim da história). Repare que a crítica a seguir é aos golpes de eloqüência, em particular dos moralistas, o que, por extensão, podemos aplicar aos romancistas do tempo de Machado.
"Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires."
Mecânica do texto
O processo de forjar o leitor crítico implicou para Machado chamar a atenção para o funcionamento de seu próprio texto. É como se desvendasse o ponto de vista de quem vê o palco de uma peça. A sensação de que não se pensa em si mesmo como audiência da história, mas mergulhado nela. Machado evidencia a própria artificialidade da escrita. Em Memórias Póstumas, consegue até fazer transições narrativas manipulando digressões.
"E vejam agora com que destreza, com que fina arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão-pecado da juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão."
O mundo é tecido complexo, de poucas, falsas ou meias verdades. Na crônica O punhal de Martinha, do jornal A Semana (1894) e citada por Ivan Teixeira, o limite é explicitado: "Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis à realidade; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em comparação com as imagináveis. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas".
A realidade de um pássaro sem asas é uma clarividente metáfora machadiana. A dimensão daquilo que é discurso cria uma realidade própria, que dita os nossos passos. Discurso, convenção social, arte, política, qualquer signo cria o próprio objeto e esse objeto se reitera no tempo, se amplifica no espaço, vira tradição, impõe comportamentos, como se fossem a própria realidade material do mundo.
O mundo exterior à linguagem, parece dizer Machado, pesa menos que os efeitos de real provocados pela imaginação. "O pássaro sem asas, não encontrando referente no mundo exterior à linguagem, remeto o leitor ao próprio sistema de representação", anota Ivan Teixeira.
O pássaro sem asas é uma imagem irônica da "ordem absurda do homem na terra", uma generalização extremada, a conversão do mundo em discurso, única maneira de realmente representá-lo. Machado reflete sobre a cultura, não a natureza. Descrê que há essências, vê o mundo como uma construção. E faz isso como quem pisca de lado.
Agenda de eventos
iniciativa
A literatura de Machado de AssisFesta Literária Internacional de ParatyAspectos da literatura machadianaExposição Machado de AssisO conto machadiano
O que é
Ciclo de conferênciasHomenageado da ediçãoExibição de adaptaçõesExposição temporáriaCiclo de palestras
Quem promove
ABLFlipABLMuseu da Língua PortuguesaCasa de Rui Barbosa
Quando
De abril a maioJunhoDe junho a dezembroSegundo semestre (previsão)Setembro, às segundas
Onde
Rio de JaneiroParaty (RJ)Rio de JaneiroSão PauloRio de Janeiro
Inéditos de Machado
Correspondência passiva (org. Sérgio Paulo Rouanet), versão em livro de mais de 700 cartas recebidas pelo autor, editada pela ABL
Poesias completas de Machado de Assis (Edusp/Nankin), org. Rutzkaya Queiroz dos Reis
Releituras
Lygia Fagundes Telles, uma das escritoras que vai reescrever Machado
Pelo menos três projetos editoriais a serem lançados este ano desafiaram escritores atuais a refazer obras de Machado de Assis.
A Ediouro uniu-se à Geração Editorial para editar uma coletânea de contos baseados em personagens e situações inventadas por Machado. Nomes de peso integram a iniciativa, como Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar e Antonio Carlos Secchin, com organização de Rinaldo de Fernandes.
A Record lança em abril Recontando Machado, em que autores compõem novas versões para contos do escritor, e o resultado será impresso ao lado do original, com organização de Luiz Antônio Aguiar. Já em agosto, é a vez de a Publifolha lançar sua coletânea em que nomes como Cristóvão Tezza recontam os romances machadianos em histórias curtas.